Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2003       Página Inicial (Índice)    


07/11/2003
A propriedade intelectual e as patentes

Na coluna de 20 de agosto de 2001, foi feita um incursão no terreno da propriedade intelectual, comumente concedida como um dos principais motores da economia globalizada. A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em 1995, com sede em Genebra, como resultado da Rodada Uruguai de negociações sobre o comércio internacional, e hoje conta com a participação de mais de 140 países (incluindo o Brasil e a grande maioria dos seus parceiros comerciais). A OMC cuida das regras do comércio internacional, baseadas em acordos multilaterais entre seus membros, referendados pelo legislativo de cada país individual (v. www.wto.org/spanish/thewto_s/whatis_s/whatis_s.htm).

Direitos sobre propriedade intelectual são tipicamente divididos entre o direito autoral, referentes a autores de obras literárias ou artísticas, inclusive o software, a artistas intérpretes ou executores, a gravadoras de música e a órgãos de radiodifusão, e a propriedade industrial, que inclui as invenções, os desenhos e modelos, e o segredo industrial (v. www.wto.org/spanish/tratop_s/trips_s/tripfq_s.htm). Na coluna de 20 de agosto de 2001, abordamos o direito autoral, e as novas proteções dadas a seus detentores através da lei DMCA (Digital Millenium Copyright Act) dos EUA, que tornou ilegal até a investigação acadêmica de qualquer mecanismo usado pelo detentor do direito autoral para preservar este direito, mesmo quando este mecanismo seja de eficácia questionável. Nessa coluna, identificamos como principais inspiradoras dessa legislação as indústrias fonográficas e do cinema, que buscavam meios tecnológicos de preservar seus modelos de negócio tradicionais, num mundo digital onde se torna trivial e barato fazer cópias idênticas de CDs e DVDs, e boa parte do tráfego das redes de computadores consiste do envio de cópias de tais conteúdos. Os EUA gostariam que outros países adotassem esta lei DMCA, e isto faz parte das metas da criação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), fortemente promovida por esse país e vista com certa reserva por vários outros países do hemisfério.

Hoje vamos dar atenção à outra perna da propriedade intelectual, e especialmente às invenções, tradicionalmente protegidas através de patentes. Uma patente é um monopólio, concedido pelo governo, da exploração comercial de uma invenção, limitado no tempo (tipicamente em torno de vinte anos), em troca da revelação do seu funcionamento. O dono de uma patente pode licenciar sua invenção para outros usarem, sob condições, em troca do pagamento de "royalties". Pode também se recusar a fazer isto, e processar por danos qualquer um que use sua invenção indevidamente.

Tem várias áreas novas do saber onde patentes têm se mostrado importantes nos últimos tempos. Embora não seja normalmente apropriado patentear software, foram emitidos diversas patentes para processos, ou algoritmos, usados para confeccionar software. Em geral, para conseguir registrar uma patente, é necessário solicitar seu cadastro à agência governamental de patentes, que no Brasil é o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). A agência de patentes então examinará a invenção, para verificar se é realmente nova, o que inclui a condução de uma pesquisa de patentes existentes. Depois de concedida a patente, o seu dono está habilitado a cobrar "royalties" de quem ele considera está usando sua invenção.

Às vezes esta cobrança chega a ser uma grande surpresa para quem está sendo cobrado. Consideremos o caso da empresa norte-americana, Acacia Media Technologies, detentora de cinco patentes norte-americanos que descrevem o conceito de "streaming" (transmissão de fluxos) de áudio e vídeo por uma rede de computadores. As patentes, concedidas a uma outra empresa em 1992, foram comprados por Acacia em 2001, com o evidente objetivo de explorá-los. Os primeiros alvos eram os provedores de conteúdo para sítios pornográficos na Rede (v. www.wired.com/news/business/0,1367,59598,00.html). Ameaçado com o fechamento dos seus negócios, muitas destas empresas concordaram em pagar à Acacia entre 1 e 2% da sua receita bruta. Mais recentemente, a Acacia começou a visar aplicações educacionais de "streaming" e enviou correspondência a várias universidades dos EUA, exigindo o pagamento de 2% da receita dos seus cursos remotos que utilizem esta tecnologia (v. http://www.interesting-people.org/archives/interesting-people/200311/msg00020.html).

O direito do detentor da patente pode ser questionado na justiça, normalmente demonstrando que a patente apenas formaliza o que já é uma prática corrente (chamada de "prior art" em inglês). Mas, é complicado e caro defender-se num processo envolvendo patentes, e normalmente o resultado é a desistência da ação pelo lado financeiramente mais fraco, ou fechando seu negócio, ou chegando a um acordo com o detentor da patente.

Tradicionalmente, uma patente somente tem validade no país onde foi concedido. Para garantir-se em outros países, seria necessário registrar a patente neles também. Desde 1970 isto pode ser feito por uma patente internacional, resultado do Tratado de Cooperação em matéria de Patentes - PCT (v. www.wipo.int/pct/es/treaty/about.htm). Uma patente internacional tem validade nos mais de 100 países signatários destes tratado. Evidentemente, há muito interesse atualmente na proteção de propriedade industrial em nível mundial, e países exportadores de tecnologia são os principais defensores nesta proteção. Atualmente as áreas mais polêmicos são de remédios e de organismos geneticamente modificados (OGM), os chamados "transgênicos". Em ambos casos, os donos das patentes geralmente são empresas muito grandes, bem capazes de sustentar na justiça longas ações contra seus desafetos. E elas lidam com áreas socialmente sensíveis. Em ambos casos, a justificativa mais comum oferecido para a cobrança dos "royalties" é que elas precisam recuperar seus grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos.

No caso dos remédios, foi dada consideração especial no ADPIC (acordo da OMC sobre os Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio) - vide www.wto.org/spanish/tratop_s/trips_s/pharmpatent_s.htm. Nesta área já havia sido estabelecido antes o princípio de licenciamento obrigatório, a preços "razoáveis", da fabricação de remédios de interesse público, por exemplo, os genéricos e os usados para o tratamento de AIDS. Em agosto deste ano, foi também acordado que tais remédios poderiam ser exportados para outros países, que não tivessem condições de fabricá-los. A recente visita do Presidente Lula a países africanos incluiu explorar estes acordos, especificamente para o fornecimento de remédios genéricos para o tratamento de AIDS.

A questão das patentes para os organismos geneticamente modificados (OGM) é muito mais complexa. Aqui estamos falando do patenteamento de formas de vida, o que não é aceito universalmente por diversos motivos, inclusive ambientais e éticos. Os ambientalistas se preocupam com as conseqüências de liberar na biosfera novas formas de vida, sem ter sido exaustivamente avaliado seu impacto ambiental. As preocupações éticas se concentram na correção de tratar a vida como se fosse um bem comercial. Entretanto, há países onde tais patentes são concedidas e existem empresas que as exploram comercialmente.

Talvez a maior, certamente a mais conhecida, é a Monsanto, sediada na cidade de Saint Louis, estado de Missouri, nos EUA. Há vários anos, esta empresa vem desenvolvendo e comprando patentes para variedades de plantas usadas na agricultura. A Monsanto também fabrica fertilizantes, dos quais o mais conhecido é a herbicida, Roundup, cujo ingrediente ativo é o glisofosfato. A patente para o glisofosfato já teria expirado, permitindo sua liberação para fabricação por terceiros. Entretanto o maior projeto da Monsanto visa dar sobrevida ao seu antigo monopólio de fabricação desta herbicida através da criação de variedades de plantas, geneticamente modificadas para incluir um gene resistente ao glisofosfato. Com isto, a Monsanto criou uma variedade de soja, vendido como "Roundup Ready" (pronto para Roundup), que inclui este gene. A vantagem comercial desta soja é que ficou mais barato o seu cultivo, pois pode-se exterminar as ervas daninhas dos campos plantados com a soja geneticamente modificada, sem danificar a soja, tratando o campo com a herbicida, Roundup.

A Monsanto é impiedosa na proteção dos seus direitos neste ramo. O contrato padrão que celebra com os plantadores de sua soja nos EUA inclui, entre outras provisões, duas especificamente arquitetadas para preservar seu monopólio. A primeira exige o uso da sua marca de herbicida, a Roundup, e não uma "genérica" qualquer. A outra proíbe a prática milenar de agricultores de guardar parte da produção agrícola de uma safra para replantio para a próxima. Desta forma, a cada safra os agricultores terão que comprar novos sementes da Monsanto, tornando-se, desta forma, um inquilino dos sementes. Semana passada saiu reportagem nos EUA sobre uma disputa na justiça onde a Monsanto havia processado um fazendeiro do próprio estado de Missouri, que havia replantado parte da sua produção de soja. A Monsanto chama isto de "pirataria". O corte havia dado ganho de causa à Monsanto, e mandou o fazendeiro pagar US$780.000 em compensação. Em breve será apresentado recurso, mas a expectativa é que a Monsanto deve ganhar nesta segunda instância, o que precipitará a falência do fazendeiro (v. www.nytimes.com/2003/11/02/national/02SEED.html). É evidente que a Monsanto escolheu fazer deste caso um exemplo para os outros.

O gene que protege a soja de glisofosfato já foi enxertado em outras plantas comercialmente exploradas. No Canadá, boa parte da produção de canola usa sementes "Roundup Ready". Naquele país, tornou-se famoso o caso de Percy Schmeiser, fazendeiro da província de Sakatchewan, que cultiva a canola. Ele nunca foi cliente da Monsanto, mas foi descoberto que uma parte da sua produção de canola continha o gene patenteado da Monsanto. Monsanto o processou por "pirataria", e Schmeiser se defendeu alegando que o gene somente pode ter chegado a sua fazenda levado pelo vento em forma do pólen das plantações vizinhas que usam a canola "Roundup Ready". Em primeira instância, o corte julgou que, mesmo chegando o gene desta maneira, ele continua sendo a propriedade da Monsanto, e deu ganhou de causa à empresa. O fazendeiro recorreu e perdeu novamente. Atualmente, está sendo encaminhado um segundo recurso ao Supremo Corte do Canadá, com julgamento esperado em janeiro. O caso agora está atraindo atenção mundial, e no Canadá um governo provincial resolveu se associar ao caso, por sua semelhança a outra disputa judicial sobre patentes na área de saúde. Para maiores informações v. www.wired.com/news/print/0,1294,37088,00.html e www.percyschmeiser.com/.

Mudando agora para o Brasil, vale reconhecer a importância do atual contencioso sobre o plantio de soja transgênica no país. Até recentemente, não era sequer permitido o cultivo de organismos geneticamente modificados, e o país até ganhou mercados para seus produtos, baseado na premissa que eles explicitamente não eram geneticamente modificados. Agora admite-se oficialmente que boa parte da produção de soja dos estados do Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul depende de sementes transgênicos contrabandeados da Argentina, e baixou-se há um mês Medida Provisória que regulariza esta situação apenas para a próxima safra. O que será feito depois ainda estaria em estudos.

Como a variedade de soja transgênica em questão é o "Roundup Ready", seria apenas uma questão de tempo antes que a Monsanto aparecesse para cobrar o seu quinhão. Não falhou. No último dia 5 de novembro, o presidente da Monsanto no Brasil encontrou-se com parlamentares na Câmara dos Deputados para anunciar que a empresa pretende cobrar "royalties" aos plantadores da "sua" soja, possivelmente à taxa de R$25 por tonelada, cobrados na hora de entregar os grãos aos armazéns (Folha de S. Paulo, edição de 6/11/2003). Segundo a reportagem, os produtores acham alta esta cobrança e reinvindicam que seja cobrada qualquer taxa apenas na venda dos sementes, e não na colheita. Como se vê, está sendo armado um grande conflito entre os interesses dos fazendeiros e da Monsanto. Pior, a biosfera nacional agora está comprovadamente contaminada pela invenção da Monsanto, de difícil erradicação, e pela qual a empresa quer nos cobrar "royalties". Isto faz sentido?

Tentamos aqui, através de alguns casos notórios, demonstrar as ramificações na prática da defesa de propriedade intelectual através de patentes. Na agricultura realmente há um choque cultural entre as práticas tradicionais e as novas que resultam da exploração mais eficiente da produção de alimentos por grandes empresas. E no mundo "globalizado" em que vivemos, esta exploração é facilitada pelos acordos internacionais que simplificam a defesa dos direitos de grandes empresas, pois apenas estas têm as condições logísticas para aproveitar as oportunidades. Inclusive as conseqüências de algumas das suas ações podem até subverter as políticas públicas de governos, como demonstrado cabalmente no caso do cultivo ilegal de soja transgênica no Brasil.