Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2004       Página Inicial (Índice)    


18/10/2004
A modernização dos passaportes

Hoje em dia, tornou-se ubíquo o uso de passaportes para identificar viajantes internacionais. Não era sempre assim. Segundo a Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), uma agência especializada da ONU (v. www.icao.int/mrtd/guidance/HistLeague.cfm), antes do século XIX havia poucas pessoas que viajavam fora dos seus países, normalmente envolvidas em missões governamentais ou do comércio, ou eram membros de classes privilegiadas. Para estas pessoas poderem viajar com segurança, levavam uma forma de passaporte, que poderia ser uma carta de recomendação de um governo ou soberano, ou um salvo-conduto. Por serem poucos os usuários, não haveria problemas sérios nas fronteiras entre os países - a verificação e a validação dos passaportes não se tornariam obstáculos.

Isto mudaria com o início do turismo em massa associado às facilidades de transporte rápido e barato na idade das ferrovias no século XIX, com o aumento súbito do número de viajantes. Para contornar os problemas surgidos com os atrasos agora criados na travessia das fronteiras, houve uma série de entendimentos internacionais, que limitavam ou eliminavam o uso dos passaportes em viagens internacionais. Este estado de graça era suspenso em tempos de guerras, notadamente a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), depois da qual procurou-se padronizar pela primeira vez os passaportes através de conferências internacionais, em 1920 e 1926, sob os auspícios da Liga das Nações. O trabalho iniciado pela Liga teve continuação depois da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), sendo conduzido pela OACI.

Para a maioria dos países, o padrão atual do passaporte não difere muito daquele adotado depois da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, nos últimos anos, a OACI tem promovido a modernização do passaporte com o aproveitamento de recursos de informática, objetivando tornar mais rápidas e eficientes a verificação e a validação deste e de outros documentos, quando necessário. O objetivo principal é permitir a transferência automática de informação do passaporte para um sistema de controle computadorizado, sem intervenção manual, como hoje é feito nos nossos aeroportos e portos, onde os dados do passaporte são (re)digitados pelo policial que entrevista o viajante. Uma das propostas da OACI, do início dos anos 1980, é incluir os dados básicos do passaporte em texto capaz de ser escaneado opticamente e interpretado, por meio de Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR). Para tanto, estes dados são incluídos na página de identificação do passaporte em duas linhas de 44 caracteres no fonte OCR-B. Segue um exemplo, baseado no meu passaporte.

Os dados incluem o país emissor (BRA=Brasil), o sobrenome e nomes do portador, o número do documento, a nacionalidade, a data de nascimento, o sexo do portador e a data de expiração do documento, entre outras informações. A definição deste padrão é conhecido como Documento 9303 da OACI (v. www.icao.int/mrtd/publications/doc.cfm e www.highprogrammer.com/alan/numbers/mrp.html). Não adianta procurar estes dados no passaporte brasileiro de hoje, pois este ainda não adotou tal padrão, como também não o adotaram os passaportes de muitos outros países. Entretanto, a Polícia Federal já o usa há vários anos para a carteira de identificação de estrangeiros aqui residentes.

Desde os eventos de setembro de 2001, o governo dos EUA começou a se preocupar muito mais com a segurança nacional e especialmente com a identificação de estrangeiros e o controle da sua admissão naquele país. Uma das frentes desta batalha tem sido a maior sofisticação dos passaportes, permitindo sua leitura eletrônica. Além da leitura do texto do passaporte, a nova demanda é para poder verificar também os chamados dados biométricos, aqueles relativos à fisionomia ou outras características físicas do portador que ajudem a validar que o passaporte é realmente o seu.

Um passo unilateral na direção do maior controle dos EUA sobre a admissão de estrangeiros foi tomado este ano com a introdução da obrigação de portadores de visto serem fotografados e terem tomadas suas impressões digitais ao chegarem num porto de ingresso daquele país. Estes dados foram digitalizados para armazenamento numa base de dados. Como se sabe, esta iniciativa foi imediatamente imitada na admissão de cidadãos norte-americanos pelas autoridades de imigração brasileiras, em nome da reciprocidade de tratamento. Não é claro se esta coleta de dados biométricos dos visitantes norte-americanos ao Brasil vai ter alguma serventia prática - parece que não.

Os EUA, até outubro deste ano, liberaram da coleta destes dados biométricos na chegada cidadãos de 27 países, principalmente da Europa, do leste da Ásia, Austrália e Nova Zelândia, que não tinham obrigação de obter vistos. A partir deste mês, para estes cidadãos esta dispensa agora somente é dada se o passaporte seguir o padrão do Documento 9303 da OACI, com texto escaneável.

Mas a grande reforma está para vir: é intenção dos EUA e destes 27 países adotarem novo padrão de passaporte em breve que inclua em forma digital os dados tanto de texto como biométricos. Estes dados seriam gravados numa memória digital incluída fisicamente no passaporte, e poderiam ser lidos pelo agente de imigração. A OACI já publicou documento indicando as características do novo passaporte digital, disponível em www.icao.int/mrtd/download/documents/Biometrics%20deployment%20of%20Machine%20Readable%20Travel%20Documents%202004.pdf. Este documento, acordado em 2004, discute quais dados biométricos poderiam ser incluídos, qual o formato de dados a ser adotado, como proteger a integridade destes dados e por que método os dados deveriam ser acessíveis para leitura.

Os dados biométricos considerados incluem a fotografia frontal do rosto, como usado nos passaportes atuais, as impressões digitais e a imagem da íris. Por razões pragmáticas, resolveu-se padronizar a foto do rosto em formato digital, embora admitindo que os governos poderiam acrescentar outras alternativas, se desejassem. Os dados seriam armazenados numa memória digital (estima-se requerer pelo menos 32 KB para os dados de emissão do passaporte digital), cujo conteúdo teria sua integridade protegida pelo uso de assinatura digital. Inicialmente, a memória somente poderia ser escrita na hora da emissão do passaporte digital, mas futuramente prevê-se a possibilidade de se realizar atualizações nestes dados, talvez para registrar a emissão de vistos. Finalmente, o relatório da OACI recomenda a adoção de leitura por meio de identificação por radiotransmissão (RFID), como descrito na coluna de 22 de agosto. O uso do RFID se justificaria por ser mais robusto do que a leitura elétrica, o que requereria um bom contato elétrico. A princípio, o passaporte digital precisaria passar a alguns centímetros da leitora RFID.

A decisão de usar tecnologia RFID para passaportes digitais vem sendo criticada por especialistas em segurança, como Bruce Schneier (v. www.iht.com/articles/541711.html), que alegam que outras pessoas poderiam ler os dados contidos nos passaportes digitais a distâncias maiores, sem o conhecimento dos seus portadores. Isto representaria uma invasão da privacidade da pessoa e poderia comprometer sua própria segurança. Também poderia permitir a clonagem de passaportes digitais, de modo análogo à clonagem de telefones móveis. Possivelmente, proteção poderia ser dada a estes passaportes guardando-os em envelopes metálicos, o que impediria sua leitura por RFID.

Os EUA já anunciaram que pretendem adotar este tipo de passaporte para seus próprios funcionários ainda em 2004 e iniciar emissão para o público em 2005. Como os passaportes deste país hoje duram 10 anos, deve levar este tempo para sua substituição completa pelo novo padrão. Espera-se que outros países também o adotem em breve. Será que também se incluirá o Brasil?