Michael Stanton

WirelessBrasil

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11/12/2000
No país de George Orwell

No domingo, dia 3 de dezembro, o jornal The Observer de Londres noticiou a divulgação de uma recomendação, até então reservada, do Serviço Nacional de Informações do Crime (NCIS) britânica, que advogava a "retenção" (armazenamento em arquivo) de registros de comunicações telefônicas e pela Internet por um prazo de sete anos (www.jt.com.br/editorias/2000/12/04/int583.html). The Observer, um jornal de tendência liberal, também condenou a proposta, tachando-a de escandalosa por aumentar em demasia os poderes de investigação do governo, às custas da privacidade do cidadão comum. O documento polêmico pode ser encontrado na URL cryptome.org/ncis-carnivore.htm. Vale a pena tentar entender o que passa na Inglaterra, para melhor apreciar os objetivos dos seus proponentes e as objeções dos seus críticos.

É bom lembrar que já pisamos neste terreno antes em três ocasiões. Em 17 de julho "A privacidade nas comunicações" explicou o dispositivo constitucional de defesa da privacidade no País, em 7 de agosto "Grampeando a Internet" apresentou o aparelho Carnivore inventado pela FBI para espionar a Internet, e em 28 de agosto "Os primos do Carnivore" falamos sobre as iniciativas britânica e russa. Esta nova proposta está claramente relacionada à anterior, mas é necessário explicar mais dos seus propósitos.

Comecemos com o sigilo telefônico, que é o mais antigo. Como foi descrito na coluna de 17 de julho, a interceptação (grampo) de telefonemas vem sendo feito há muito tempo, pois era tecnicamente muito fácil com a antiga telefonia analógica. Quando a indústria começou a adotar a tecnologia digital, a facilidade acabou, com a conseqüência que o governo norte-americano propôs e em 1994 conseguiu a aprovação da CALEA, uma lei que facilita o grampo de telefonemas em centrais digitais. Pela lei norte-americana, o uso deste recurso requer a autorização de um juiz. Além de escutar os telefonemas, os agentes governamentais freqüentemente se interessam pelo simples registro das chamadas realizadas e recebidas, indicando a hora e duração e o número do outro telefone. Para cada telefonema realizado, esta informação, chamada nos EUA de pen record, é registrada corriqueiramente pelos computadores das operadoras de telefonia, para fins de tarifação do uso. Com a autorização de um juiz, esta informação pode ser entregue para uma investigação. Isto também acontece no Brasil, onde também pode ser pedido por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), e aqui é conhecido como "quebra de sigilo telefônico".

Segundo a nossa Constituição, as garantias individuais de privacidade enumeradas no inciso XII do artigo 5o incluem o sigilo da correspondência, e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, sendo apenas esta última sujeita a quebra por ordem judicial, na forma indicada acima. Esta situação difere de alguns outros países. O aparelho norte-americano Carnivore e seus primos na Inglaterra e Rússia se propõem a realizar interceptação de tráfego na Internet, possibilitando acesso ao conteúdo de mensagens de correio eletrônico. Tecnicamente, isto é realizado por um dispositivo chamado de sniffer, que simplesmente intercepta todas as mensagens que passam pela rede. Com esta capacidade, o dispositivo poderá então realizar "filtragem" de todas estas mensagens, para procurar, por exemplo, aquelas enviadas de um determinado computador, ou para um determinado destinatário, ou que contenham frases ou palavras "suspeitas". Isto seria o grampo da Internet.

Qual seria o equivalente do pen record para a Internet? No caso do correio eletrônico, seria a identificação do remetente e destinatário da mensagem, e talvez do seu tamanho. Explicitamente seria excluído seu conteúdo. Para o caso de uso da Web, seria a seqüência de páginas consultadas por um determinado usuário. Vamos considerar as implicações disto para a privacidade do usuário da Internet. Já imaginaram informações mais sensíveis do que estas, exceto, evidentemente, o próprio conteúdo das mensagens? No caso de telefonemas, não teríamos a certeza da identidade das pessoas usando o telefone, pois são registrados apenas os números dos telefones usados. No caso da Internet, o próprio usuário seria identificado, junto com seus correspondentes e a matéria que ele consulta na Web. Eu uso a Web como uma grande biblioteca virtual. Também uso-a para fazer compras. Eu poderia usá-la para atividades lúdicas de diferentes tipos. Um pen record do meu uso da Web rastrearia toda esta atividade, apresentando a um investigador informações extremamente detalhadas sobre meus interesses, minha curiosidade, meus negócios, meu divertimento, e assim em diante. Hoje em dia, os provedores de acesso Internet não utilizam este tipo de informação sobre correio eletrônico e acesso à Web para tarifar a utilização. Eventualmente, um provedor de acesso mantém registros destas atividades para seus servidores de correio eletrônico. Se ele opera também um "servidor-procurador" (proxy cache) para WWW, ele pode ter estas informações para acesso à Web. Porém, os registros são normalmente usadas apenas para a depuração de problemas eventuais, e depois descartadas em poucos dias.

O NCIS britânico agora propõe a retenção por período de sete anos destes pen records, tanto para telefonia, como para acesso Internet, para viabilizar o uso desta informação para realizar investigações durante este período. A proposta reconhece que as operadoras de telefonia já vêm cooperando desta forma, mantendo seus pen records de telefonia disponíveis durante dois anos ou mais, mas que os provedores Internet não os retêm. Portanto, o NCIS propõe que o governo custeie a criação e operação de centros para o armazenamento e posterior pesquisa destes registros. O período de sete anos visa atender à sua limitação de utilidade em processos na justiça. Em defesa desta proposta argumenta que tal infra-estrutura apenas operacionaliza o que é permitido pela nova lei RIPA (Regulation of Investigative Powers Act) (v. coluna de 28 de agosto), que obriga os provedores Internet a colaborarem em investigações autorizadas judicialmente. Como quase sempre nos últimos tempos, a justificativa para esta "pequena" extensão em capacidade investigadora é o combate ao crime organizado, ao terrorismo, à subversão, e assim em diante, apoiados em alta tecnologia de comunicação. A proposta tem o endosso da polícia e dos serviços de informações civil e militar.

O brado de The Observer contra esta proposta nos lembra que Inglaterra, ao contrário do Brasil, é um dos poucos países sem uma constituição, e sem uma definição de direitos individuais que possa ser usada para limitar a eficácia de leis comuns. Nesta situação, os agentes do seu governo já se acostumaram a se arrogar o direito de investigar amplamente, e agora querem estender ainda mais sua atuação, alcançando os registros dos últimos sete anos de atividades de comunicação da população inteira daquele país. Nas palavras de The Observer, é como considerar a população inteira potencialmente culpada, subvertendo em escala monumental os princípios da justiça.