Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2001 Página Inicial (Índice)
31/12/2001
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Urnas eletrônicas 2002: o enterro da
auditoria
No dia 12 de dezembro foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados o PL 5470/01 que determinaria o futuro uso das urnas eletrônicas no país. Pelo sumário editado pela própria Agência Câmara , teriam sido finalmente atendidos os anseios veiculados aqui em diversas ocasiões ao longo dos últimos 14 meses (v. as colunas de 13 de novembro e 18 de dezembro de 2000, e de 29 de julho e 12 de agosto de 2001). Ledo engano do leitor. Para os críticos da tecnologia usada nas atuais urnas eletrônicas brasileiras, a votação de 12 de dezembro representa um grande reverso, depois das expectativas nutridas no primeiro semestre do ano, na esteira do escândalo do painel de votação do Senado.
O grande problema de reformar as urnas foi sempre a dificuldade de demonstrar publicamente a necessidade disto. Afinal, a automação do processo eleitoral é geralmente considerado ter sido um dos sucessos da administração pública no país, pois gera resultados aparentemente corretos poucas horas depois da realização do pleito, deixando pouca margem de manobra para interferência externa com o eleitor ou com o processo de totalização dos votos das urnas apuradas eletronicamente. O crédito para isto se deve à iniciativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que introduziu profunda reforma no processo eleitoral desde o retorno da democracia nos anos 80. Para defender seus pontos de vista perante o legislativo, que aprova mudanças nas leis eleitorais, o TSE já contava com as pressões judiciais que poderiam pesar contra os políticos, que precisam fazer campanhas e ganhar eleições, sujeito às regras administradas pelo TSE. Com a chegada a sua presidência do ex-deputado federal e ex-ministro da Justiça, Nelson Jobim, o TSE ampliou seu poder de fogo político, pela expressiva experiência neste ramo da sua principal liderança. Infelizmente, este mesmo TSE agora passou a rechaçar toda espécie de crítica externa, inclusive a construtiva, à sua criatura, a urna eletrônica.
Já explicamos neste espaço quais são os pontos principais da crítica à urna eletrônica, e das reformas defendidas há vários anos, entre outros, pelos integrantes do Fórum do Voto Eletrônico (www.votoseguro.org), sob a coordenação do Engo. Amílcar Brunazo Filho. O mais grave é o fato da urna ser uma caixa preta, um computador cujo funcionamento interno não é sujeito à fiscalização externa ao TSE. O problema fundamental é ter confiança na correção do seu funcionamento, pois o eleitor não tem como saber se, ao dar seu voto, este acaba sendo dado a um candidato ou partido diferente do escolhido, o que seria simples de se realizar por modificação do seu software. Semelhante modificação, de fato, aconteceu no caso do painel de votação do Senado, como foi revelado no primeiro semestre deste ano. Confiança na correção da urna poderia ser conseguida, abrindo aos partidos políticos e ao público em geral os detalhes completos da programação da urna, como é exigida pela legislação atual. Em vez disto, o TSE, à revelia da lei vigente, mostra apenas parcialmente esta programação, e nos diz para confiar nele, pois age a nosso favor.
Os críticos respondem, logicamente, que a confiança deverá ser demonstrável, através da auditoria pelo eleitor, o maior interessado na correção do voto. Realiza-se auditoria através da redundância. A primeira proposta de auditoria foi a impressão do voto em papel. Este voto seria mostrado ao eleitor, para permitir que este validasse o voto realizado eletronicamente. Em caso do eleitor aprovar este voto impresso, ele seria depositado numa urna convencional, que poderia ser apurado posteriormente. O projeto de lei, PLS 194/99, de autoria do senador Roberto Requião (PMDB/PR), previa a adoção de impressão do voto desta forma em todas as urnas usadas. As urnas seriam auditadas por amostragem: após o encerramento da votação, seriam apuradas os votos impressos em 3% de todas as urnas, para comparar os resultados com as apurações realizadas eletronicamente. Estas 3% seriam sorteadas, após a realização do pleito, para termos a confiança na correção do sistema de apuração eletrônica.
Durante quase dois anos, não progrediu a proposta do senador Requião. O que lhe deu impulso foi o escândalo do painel do Senado, que mostrou publicamente como a informática pode servir tanto o bem, como o mal (v. coluna de 23 de abril de 2001). Esta bomba explodiu justamente no Senado, e a semelhança entre o painel e a urna eletrônica permitiu progredir a discussão da proposta do senador Requião. Infelizmente, os desdobramentos do caso do painel, levando à renúncia três senadores, consumiu muito tempo da casa, e não foi possível realizar a ampla discussão sobre a reforma da urna que seria desejável, para educar adequadamente a classe política e o público. A proposta do senador Requião foi aceita pelo relator, senador Tuma, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Porém, quando ela foi debatida em plenário no início de outubro, já em regime de urgência, por causa da proximidade das próximas eleições, todos os itens incluídos na proposta dos senadores Requião e Tuma foram emendados para refletir posições defendidas publicamente pelo presidente do TSE. Estas alterações foram mantidas na versão aprovada pela Câmara em dezembro.
Uma análise mais detalhada do projeto de lei eleitoral encaminhada para sanção presidencial foi publicada recentemente pelo Engo. Brunazo Filho (www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2556). Nela, os pontos mais destacados são as diferenças introduzidas pelas emendas inspiradas pelo TSE ao projeto de lei do senador Requião. Foram desvirtuados dois aspectos críticos da auditoria proposta pelo senador. No primeiro, não estando satisfeito com seu voto impresso, segundo a proposta do senador Requião, o eleitor deveria cancelar e refazer seu voto. Para eliminar eventuais atrasos na votação dos demais eleitores causados pela repetição do voto, o TSE preferiu encaminhar o eleitor dissatisfeito para refazer seu vota numa "urna manual". Os críticos desta solução alegam que isto eqüivalia a um retorno à antiga vulnerabilidade das urnas, que a introdução da urna eletrônica pretendia eliminar. A segunda diferença significativa diz respeito ao sorteio das 3% das urnas para serem validadas por contagem dos votos impressos. Na proposta do senador, estas seriam escolhidas ao acaso após o encerramento da votação. Na versão do TSE, aprovada pelo Congresso, as urnas a serem auditadas seriam sorteadas antes do pleito, provavelmente para acoplar o mecanismo de voto impresso apenas a estas, assim reduzindo em 97% a quantidade dos equipamentos usados. Os críticos da prévia seleção das urnas a serem auditadas sugerem que o prévio conhecimento das urnas a serem auditadas torna inócua esta auditoria, da mesma forma que seriam inócuos exames "anti-doping" feitos de atletas, se fossem escolhidos de antemão os atletas a serem examinados. Isto porque o próprio software de votação seria capaz de determinar se a urna estaria sendo auditada, através da deteção da presença dos equipamentos adicionais de impressão usados. Neste caso, mesmo se estivesse viciado este software, ele poderia se comportar corretamente na presença dos equipamentos de auditoria.
Finalmente, para deixar claro que não será tornado público o software da urna eletrônica, foi introduzida, a pedido do TSE, modificação no texto do projeto de lei aprovado pelo Congresso uma limitação da divulgação dos fontes apenas ao software "de propriedade do TSE", excluindo com isto software proprietário desenvolvido por terceiros, tais como o sistema operacional e a biblioteca criptográfica. Estes componentes de software são igualmente capazes de subverter a vontade do eleitor quanto o software desenvolvido pelo TSE, e a proteção legal do seu sigilo mantém o caráter de "caixa preta" da urna, incompatível com o exercício pleno da democracia.
Há várias lições a tirar deste processo. Se, por um lado, o Congresso aprovou modificações nas urnas em resposta às críticas da impossibilidade de realizar auditoria do projeto original, por outro falhou ao não analisar adequadamente as emendas sugeridas pelo TSE, que foram introduzidas na hora de votação em plenário, ao invés de serem examinadas minuciosamente na CCJ do Senado, como seria mais lógico. O TSE agiu neste processo para minimizar as modificações aos seus procedimentos, e não se dispunha a discutir abertamente as propostas dos seus críticos. Parece claro que o TSE concluiu que, para cumprir seus objetivos, seria mais eficaz atropelar a reforma discutida longamente na CCJ do Senado, agindo "politicamente", ao invés de "tecnicamente", e pedindo repetidamente o adiamento da votação sobre as propostas até que não houvesse mais tempo para sua análise fria. Acabou ganhando a parada por acordos feitos com as lideranças dos partidos políticos. Fez muita falta a realização pelo Senado do seminário público sobre o assunto, que havia sido prometido para o mês de junho, e que acabou sendo cancelado. Com isto, não se tornou ampla a discussão das propostas realizada na CCJ do Senado, e perdeu-se a oportunidade de educar o eleitorado e a classe política.
Felizmente, o ser humano é capaz de contínuo
aperfeiçoamento. O resultado das decisões tomadas pelo Congresso em 2001 não
porão fim à discussão dos defeitos das urnas eletrônicas. Seguramente, este
assunto volta à tona no futuro.