Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2002       Página Inicial (Índice)    


01/04/2002
Hollywood já quer emascular o PC

Há novo embate na guerra crônica entre as indústrias de entretenimento, vulgo Hollywood, e as de tecnologia de informação (TI) pela futura da Internet. Já tivemos ocasião de comentar este conflito na coluna de 20 de agosto de 2001, que tratou da lei DCMA - Digital Millennium Copyright Act (Lei de Direito Autoral do Milênio), adotada em 1998 nos EUA. Esta lei estende a proteção de propriedade intelectual, protegendo também os mecanismos de proteção física empregados pelos produtores dos conteúdos. Especificamente, tornou-se crime uma tentativa de desvendar tais mecanismos, e isto gerou até o momento uma série de casos interessantes, que devem até levar ao questionamento da eficácia ou até da inconstitucionalidade desta lei.

A proteção dos direitos autorais foi também defendida no processo movido pela Recording Institute of America Association (RIAA), que representa a indústria das gravadoras de música dos EUA, contra a empresa Napster (www.napster.com), como é bem conhecido, a Napster oferecia um meio gratuito de compartilhamento e troca de música digital, no formato MP3, armazenada nos discos dos computadores dos seus usuários. A Napster foi processado pela RIAA por intermediar este processo, de forma considerada por ela dolosa, e seu serviço foi suspenso. Entretanto, os usuários, que haviam aprendido com Napster que existem outras maneiras de ouvir música do que através da compra de CDs, logo correram para outros serviços semelhantes depois da interdição de Napster. Hoje, seus serviços passaram a ser providos por sistemas como Morpheus (www.musiccity.com) e KaZaA (www.kazaa.com), que tomaram o cuidado de evitar replicar as características que tornaram Napster vulnerável a um processo legal. A RIAA deve se achar perante uma verdadeira Hidra, monstro mitológico com múltiplas cabeças combatido por Hércules, o qual reagia a ter uma das cabeças decepadas com a sua substituição por mais duas.

Deve-se notar aqui que o elemento essencial no sucesso de Napster é a capacidade do computador pessoal (PC) tocar CDs de música, isto é, ler seu conteúdo digital através de leitora de CD-ROM, podendo então converter este conteúdo para o formato comprimido MP3 para futuro armazenamento e uso.

Depois da música, o campo de batalha mudou para os filmes, hoje gravados em discos DVD. A princípio não seria possível sequer exibir DVDs num PC, exceto utilizando software explicitamente autorizado para esta finalidade, porque o conteúdo digital de um DVD vem protegido por um sistema criptográfico chamado CSS - Content Scrambling System (Sistema de Embaralhamento de Conteúdo), cujos detalhes não foram revelados publicamente. Adicionalmente, não foi autorizado criar nenhum software de visualização de conteúdo de DVDs para sistemas abertos, como Linux. Um desafio deste tipo não fica sem resposta, e foi desenvolvido e difundido na comunidade Linux um software, chamado DeCSS, que decifra o conteúdo gerado por CSS. Apesar das tentativas da Motion Picture Association of America (MPAA) - a associação dos produtores de cinema - de restringir a publicação de DeCSS, é agora amplo o uso de PCs para visualizar o conteúdo de um DVD, e para copiá-lo e transmiti-lo pela Internet (http://www-2.cs.cmu.edu/~dst/DeCSS).

Nas últimas semanas, Hollywood mudou seu alvo. Principais defensores da lei DMCA, as indústrias de entretenimento já perceberam que esta lei não é uma ferramenta eficaz para seus objetivos de tornar universal a aplicação do princípio que o consumidor deve pagar para cada visualização de um conteúdo digital, quer seja música, quer seja filme, como se fosse a um concerto ou ao cinema. Ao invés de atacar pelo lado do consumidor, o MPAA resolveu ir à raiz do (para ela) problema da capacidade essencialmente ilimitada para processar informação digital do computador pessoal. Para evitar o uso do PC para copiar músicas e filmes, propõe emasculá-lo, tornando-o um mero tocador de DVD mais caro.

O instrumento para fazer isto é o projeto de lei CBDTPA - Consumer Broadband and Digital Television Promotion Act (Lei de Promoção para os Consumidores de Faixa Larga e Televisão Digital), introduzida no senado dos EUA pelo senador Ernest Hollings da Carolina do Sul (www.theregister.co.uk/content/6/24616.html). O senador Hollings vem recebendo grandes doações de campanha das mãos das indústrias de entretenimento, e chegou a ser chamado do "senador de Disney". Ao discutir seu projeto de lei, o senador alega que a falta de "proteção ubíqua" gera uma escassez de conteúdo digital de "alta qualidade", o que por sua vez prejudica a procura pelo consumidor de meios de acesso de faixa larga. Portanto, a ampla adoção da Internet de faixa larga dependerá da prévia provisão desta "proteção ubíqua" para conteúdo digital de "alta qualidade". O projeto de lei então traria mais perto do dia da Internet de faixa larga.

Entretanto, está implícita neste argumento a suposição que conteúdo digital de "alta qualidade" é gerado exclusivamente pelas indústrias de entretenimento, ignorando aplicações nas áreas de educação, saúde, ciência, tecnologia e cultura, que não sejam expressamente de natureza comercial, além das possíveis expressões de música e vídeo geradas por artistas que não fazem parte do Hollywood. A suposição foi tornada explícita nas audiências públicas no senado dos EUA sobre o CBDTPA, onde, com a única exceção de um executivo da Intel, as pessoas chamadas para comentar o projeto eram exclusivamente das indústrias de entretenimento. Em outras palavras, a visão do futuro da Internet do senador Hollings é limitada ao aspecto entretenimento, como se fosse meramente uma nova espécie de TV a cabo.

O projeto CBDTPA atende aos anseios do senador Hollings por tornar ilegais a venda e distribuição de dispositivos eletrônicos e seus sistemas operacionais, a não ser que estes impeçam a capacidade de cópia, de acordo com regras a serem determinadas pelo governo, se a indústria de TI não conseguir criar regras aceitáveis nos primeiros 12 meses depois da adoção da lei proposta. A primeira reação de vários especialistas em TI foi prever sérias conseqüências para o desenvolvimento da indústria de fabricação de computadores, em caso de adoção da CBDTPA (www.computerworld.com/storyba/0%2C4125%2CNAV47_STO69460%2C00.html). Coube a um comentarista britânico a observação que não faz sentido atrelar a indústria norte-americana de TI aos ditados das indústrias de entretenimento, pois a primeira tem importância econômico muito maior, com um faturamento anual de US$ 600 bilhões, comparado com os (apenas) US$ 35 bilhões de Hollywood (www.observer.co.uk/business/story/0%2C6903%2C672840%2C00.html). Já começou a reação da indústria de TI, com a criação de um sítio de campanha contra a CBDTPA, objetivando incentivar o público a pressionar seus congressistas para rejeitar a legislação proposta (www.digitalconsumer.org).

Na segunda coluna que escrevi neste espaço, em 12 de junho de 2000, expressei a esperança que o então sucesso de Napster fosse suficiente para convencer a indústria de música a aprender uma nova forma de lidar com a tecnologia digital, e reconstruir sua relação com o consumidor final. Já se passaram dois anos, e não apenas não houve nenhuma novidade nesta direção, como também a indústria de filmes também tenta ignorar as conseqüências revolucionárias das novas tecnologias. Tem tanto dinossauro em nossa volta, que precisa ser retirado do caminho, nos EUA como em outros países como o nosso, para que a Internet alcance seu potencial transformador da sociedade em que vivemos.