Michael Stanton
WirelessBrasil
Ano 2002 Página Inicial (Índice)
08/05/2002
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Quem controla seu gravador de vídeo?
Segundo reportagem na Folha de São Paulo no dia 7 de maio, a TV Globo e a Globosat haviam anunciado na imprensa que estava proibida a exibição de fitas de vídeo de jogos da Copa do Mundo em locais de freqüência coletiva, como bares, restaurantes, shoppings, hotéis e eventos. Somente seria permitida a transmissão ao vivo, desde que começasse pelo menos cinco minutos antes do início, e terminasse cinco minutos depois do fim da transmissão sem cortes de intervalos, anúncios e marcas de patrocinadores. É natural que esta proibição frustrou muitas pessoas, entre outras razões porque o horário dos jogos ao vivo não é muito convidativo para vê-los em locais de freqüência coletiva, e a existência de tecnologia de fita de vídeos permite gravar a transmissão para reproduzi-la numa horário conveniente. Entretanto, por força de leis de proteção de propriedade intelectual, é protegida por lei o conteúdo das transmissões de TV, e ela não pode ser gravada para posterior uso que não seja particular.
A gravação particular de programas de TV para ser exibida posteriormente em ambiente privado é protegida por lei. Nos EUA, a Sony lançou seu gravador de fita de vídeo doméstico nos anos 70, e já em 1976 sofreu processo movido pela indústria cinematográfica acusando-a de contribuir para atentar contra direitos de propriedade intelectual (copyright), pois seria ilegal gravar programas de TV. Este processo se tornou famoso como a "decisão Betamax", pois embora Sony tenha ganho em primeira instância, a indústria cinematográfica recorreu, e o caso chegou ao Supremo Tribunal, que confirmou a decisão inicial por cinco votos a quatro dos seus membros (www.hrrc.org/html/betamax.html). Este processo protegeu o uso justo (fair use) do dono do gravador, e o resto é história. Curiosamente, um dos principais beneficiários desta decisão, e da conseqüente vulgarização do gravador de fitas de vídeo, foi a própria indústria cinematográfica, cujas receitas de venda de videocassetes hoje são muito grandes.
O Supremo dos EUA demorou muito para chegar à sua conclusão neste caso, e a decisão foi por maioria de apenas um voto. Segundo consta, o tribunal deu certa consideração à questão do potencial de "dano ao valor comercial da obra copiada", e concluiu que este não justificava tratar como fora da lei o usuário doméstico. Entretanto, com o equipamento dos anos 70 não seria fácil reproduzir o programa gravado, sem os intervalos de propaganda originalmente transmitidos, através de um tecla de avanço rápido. Como os juizes observaram que os espectadores não estavam pulando os anúncios, concluíram que o gravador não causava danos aos estúdios.
Duas décadas depois, voltamos à cena com novas tecnologias. Uma destas é o DVD, que substitui o fita de vídeo como meio preferido para comercializar programas gravados, por diversas razões. Em primeiro lugar, até há pouco tempo, era praticamente impossível reproduzi-los. Isto não é mais o caso, pois agora foi lançado o gravador de DVD. Em segundo lugar, o conteúdo do DVD vem cifrado e não seria de conhecimento público o algoritmo CSS usado (v. a coluna de 1 de abril). A arma usada pela indústria cinematográfica para proteger seus interesses é o controle da tecnologia DVD através da lei DMCA (Digital Millenium Copyright Act) (v. coluna de 20 de agosto de 2001). Os equipamentos para reproduzir DVDs devem ser licenciados pela indústria cinematográfica, e começam a incorporar algumas características inéditas, como a desabilitação automática do controle de avanço rápido em certos momentos de reprodução dos discos, por exemplo, durante a mostra do aviso de restrições de cópia, e, sempre mais, durante os anúncios de outros filmes (os trailers). E tentar modificar o aparelho para desfazer estas características vira crime contra a DMCA.
O pior está ainda para vir. Uma nova classe de equipamentos de consumo doméstico parece preparar o palco para uma reedição da batalha Betamax de 20 anos atrás. Os equipamentos são os gravadores digitais (DVR - Digital Video Recorders). Estes são os sucessores dos gravadores de fita de vídeo, e armazenam as imagens, já em forma digital, num disco magnético de grande capacidade. O primeiro equipamento de sucesso deste tipo é o TiVo (www.tivo.com/home.asp), cujo último modelo da Série 2 permite gravar até 60 horas de filme, e custa em torno de US$ 400. TiVo se vende pela conveniência de uso, comparado com o gravador de fita de vídeo, que pouco evoluiu em inteligência desde a sua invenção. Ele permite, por exemplo, a fácil programação de todos os programas de uma série, a interrupção por até 30 minutos de um programa ao vivo, e um botão para pular 30 segundos na hora de reprodução de um programa gravado. Esta última característica é muito usado para passar rapidamente pelos intervalos comerciais gravados junto com o programa.
TiVo foi o primeiro DVR e o mais vendido. O coqueluche do momento chama-se ReplayTV, da Sonic Blue (www.sonicblue.com/default.asp), cuja capacidade varia entre 40 e 320 horas de gravação, e possui ainda mais recursos do que o TiVo. Por exemplo, o ReplayTV reconhece os intervalos comerciais, e suporta a opção de pular todos estes na reprodução. (Isto me lembrou do caráter Hadden, o velho bilionário que apoia a Elly Arrowsmith no livro Contact de Carl Sagan, editado em 1985, e que virou um bom filme. No livro, revela-se que Hadden ganhou muito dinheiro inventando dispositivos para emudecer as TVs na hora dos intervalos comerciais.) Mais, a inteligência não termina aí. O aparelho possui uma interface de rede local, e pode ser acoplado à Internet. Isto o faculta a fazer acesso a um serviço de guia de programação, como para trocar programas gravados com outros aparelhos ReplayTV, ou localmente, dentro da sua casa, ou pertencentes a seus amigos.
A indústria cinematográfica estrilou, acusou a Sonic Blue de apoiar pirataria e entrou em outubro de 2001 com um processo nos mesmo moldes que no caso da Betamax da Sony nos anos 70. Há quem acha que a indústria considera esta a oportunidade de ouro para reverter a decisão negativa naquele caso. Na semana passada, o juiz no novo processo ordenou que a Sonic Blue passasse a monitorar os hábitos dos usuários dos seus equipamentos, para saber os programas gravados, os anúncios pulados e os programas trocados entre usuários pela Internet, e passar estas informações aos seus adversários. Foi dado um prazo de 60 dias para cumprir a ordem. A empresa ainda não decidiu sua resposta à ordem, mas se confessou "bastante perturbada" ao ser ordenada a invadir a privacidade dos seus clientes. Espera-se uma contestação legal.
Por outro lado, os porta-vozes da indústria cinematográfica são uníssonos em condenar o atentado percebido nesta nova tecnologia, na categoria de um novo Napster. O mais agressivo destes foi Jamie Kellner, da AOL Time Warner, que semana passada emitiu a opinião que o uso do botão num DVR para pular os anúncios é simplesmente roubo. Na visão dele, o usuário tem um contrato com a rede de TV que inclui a obrigação de assistir os anúncios. Disse: "Quando você deixar de ver um anúncio, na verdade você está roubando o programa." Questionado mais, Kellner admitiu uma certa tolerância se o usuário quiser pegar algo para beber da geladeira, ou precisar ir no banheiro.
Talvez o benefício desta discussão seja em reexaminar o modelo de negócio para a TV. Como hoje funciona, a maioria dos canais obriga seus usuários a receber anúncios. Os novos equipamentos DVR permite dispensar os anúncios, o que poderá solapar o modelo - afinal, qual anunciante vai querer pagar para anúncios que sequer sejam vistos. Entre as propostas que surgiram está de Brad Templeton sobre o Futuro de Propaganda na TV (www.templetons.com/brad/tvfuture.html). Depois de analisar o real custo por usuário de sustentar um canal de TV usando propaganda, Templeton propõe um esquema alternativo, que chama de anúncios interativos. Basicamente, este esquema pressupõe TV paga, mas com descontos de acordo com o número de anúncios assistidos. Se forem assistidos em número suficiente, o preço pode cair a zero. O usuário teria que demonstrar que assistiu o anúncio, respondendo um pequeno teste baseado no seu conteúdo. A viabilidade disto dependerá da tecnologia disponível.
A alternativa preferida pela indústria cinematográfica é outra: eles tentarão a tapar todos os possíveis buracos que permitam modificar o modelo atual, através de controle até o aparelho de TV do usuário, que seguirá os padrões restritivos impostos pela indústria. Este mundo não tem espaço para outras alternativas tecnológicas, como discutimos na coluna de 1 de abril. Entre as conseqüências desta linha seria a obsolescência forçosa de todos os aparelhos de TV digital já comercializados, por não se conformarem aos novos ditados de Hollywood.
Não se deve imaginar que isto tudo é teórico, pois
acontece apenas nos EUA. A discussão sobre o direito de propriedade intelectual,
o que hoje em dia significa principalmente atender às indústrias de software,
música e filmes, está há muito encaminhada aqui. A maioria dos beneficiários
serão empresas no exterior, que são grandes exportadoras para Brasil. E ainda a
Anatel examina questões relacionadas à televisão digital. Será que também leva
em consideração as preocupações mencionadas aqui. Parece que o usuário e
consumidor, que gasta seu dinheiro para comprar estes equipamentos, será o
último a ser considerado em legislar sobre sua forma e seu uso.