Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2003       Página Inicial (Índice)    


31/03/2003
Ciberdireito no Rio de Janeiro

O que seria o ciberdireito, ou o direito da Internet? Leitores habituais de colunas publicadas neste espaço terão notado que não são poucas as vezes que tem sido tratada a interação entre a tecnologia e a sociedade, chamando à atenção o funcionamento das regras desta sociedade, formuladas como leis e decisões jurídicas. Pela própria novidade da transferência para o mundo virtual de muitas das funções e atividades do nosso cotidiano, é natural que deve haver alguma correspondência neste mundo virtual à proteção de direitos, sobre propriedade, privacidade, liberdade de expressão e assim por diante, acordados por lei no mundo real. Para tanto é absolutamente necessário que sejam reformuladas e estendidas as leis atuais, e este assunto tem atraído a atenção de muitos estudiosos e praticantes de direito. Nos EUA, um dos principais centros acadêmicos neste novo ramo do direito é o Centro Berkman, da Universidade Harvard.

Semana passada, junto com mais 130 outras pessoas, participei no seminário sobre direito da Internet, do Centro Berkman, oferecido no Rio de Janeiro em conjunto com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (cyber.law.harvard.edu/ilaw/brazil03/brazil.html). Esta seria a quarta realização deste seminário desde 2001, e a primeira no Brasil, aproveitando para data a realização simultânea da recente reunião da ICANN no Rio de Janeiro (v. coluna de 23 de fevereiro). Dos 130 inscritos, um terço eram advogados ou estudantes de direito, outro terço de empresas e 22% de universidades. A grande maioria era do Brasil, mas havia também participantes de outros países. Do corpo docente, oito eram professores de direito, sendo cinco dos EUA e três do Brasil, entre eles Larry Lessig da Universidade Stanford (v. coluna de 17 de fevereiro de 2002) e Joaquim Falcão da FGV. Participavam também comunicadores como Cora Ronai, editora do caderno Informática etc. de O Globo, e Sílvio Meira da Universidade Federal de Pernambuco (meira.com), [o músico e pensador John Perry Barlow, que primeiro cunhou a palavra "ciberespaço"(v. entrevista com Pedro Dória de 4 de março no sítio No Mínimo), e nosso querido Ministro da Cultura, Gilberto Gil.

Talvez em função da abrangência da matéria e da heterogeneidade da assistência, várias das sessões eram repletos de professores de direito dando explicações de como funciona a tecnologia de comunicação usada na Internet. Esta base de conhecimento é claramente fundamental para que as pessoas tenham um universo comum de discurso para debater os problemas. Foi bastante interessante para mim esta parte, porque me ajudou a ver de um outro ponto de vista os assuntos que leciono na universidade para engenheiros e cientistas. Em outras sessões, os professores de direito abstrairiam da tecnologia. Por exemplo, Lessig apresentou os argumentos, já devidamente expostos no seu primeiro livro, Code (Código), que o ciberespaço é realmente regulável por governos e por outros interesses, apesar da defesa ardorosa que o ciberespaço é de alguma forma "diferente" da sociedade real, e que os governos deveriam deixá-lo em paz. Esta posição foi cristalizada na "Declaração de Independência de Ciberespaço", formulada em 1996 por John Perry Barlow (v. www.aguaforte.com/antropologia/declara.html).

Barlow e Gilberto Gil debateram a questão de direitos autorais de música, neste momento em que boa parte dos usuários da Internet passa seu tempo trocando cópias de músicas, a revelia e contra a expressa vontade da indústria de gravadoras de música, que teima a perda de receita da sua atividade de comercialização de música gravada em CDs. Foi defendida a livre publicação de músicas pela Internet como sendo de mais interesse aos criadores de música do que o sistema atual. Talvez seja uma posição pragmática, pois é difícil colocar o gênio de volta na garrafa nestes tempos de KaZaA, FreeNet e Orpheus, e outros sucessores de Napster. A questão de música é apenas um dos exemplos de controle de propriedade intelectual, o fruto de criação artística e profissional, juntando música, filmes, livros e software, entre outros itens. Lessig já havia analisado esta questão em seu livro, The Future of Ideas (O Futuro das Idéias), em que alerta contra a extensão cada vez maior da proteção de propriedade intelectual como sendo nefasta para o desenvolvimento da cultura, por tornar muito difícil a adaptação e incorporação em novas criações de idéias, imagens e músicas ainda protegidas pelas atuais leis nos EUA (a situação é parecida em vários outros países), que só colocam produtos criativos no domínio público 80 anos depois da morte do seu autor. Antes disto, é necessário negociar estes direitos com seu dono, criando muitas dificuldades e despesas para os novos criadores.

Em outras sessões foram apresentados e discutidos assuntos como a exclusão digital, a governança da Internet incluindo a ICANN e o Comitê Gestor Internet do Brasil, o software livre e suas alternativas, a democracia incluindo a automação do voto através das urnas eletrônicas, a liberdade de expressão, a questão de jurisdição (onde processar e em qual sistema de leis em caso de comunicação internacional pela Internet), e a privacidade incluindo o uso de criptografia. Um registro parcial (em inglês) da maioria das sessões se encontra no blog da Donna Wentworth do Centro Berkman, publicado em www.corante.com/copyfight/20030301.shtml.

Como se pode ver, os assuntos são variados e são ilustrativos da extensão do impacto da Internet sobre o funcionamento das nossas sociedades atualmente. Foi uma boa oportunidade de discutir estes assuntos de modo sistemático no Brasil, e deve-se reconhecer o papel importante dos professores da Escola de Direito da FGV, e em especial Joaquim Falcão e Ronaldo Lemos, por dar-nos esta oportunidade de faze-lo de modo tão feliz. Evidentemente, o objetivo a médio prazo de uma sociedade como a brasileira deverá ser regular adequadamente as inovações introduzidas nesta sociedade através dos poderes legislativo e judiciário. Enquanto não se pronuncia o poder legislativo sobre modificações às leis, caberá aos juizes decidirem as contendas na luz das leis existentes. É evidente que tanto os legisladores como os juizes e ainda os advogados precisam familiarizar-se com as características e demandas das novas tecnologias de informação e comunicação. A iniciativa da FGV toma um passo importante neste sentido, e fazemos votos que virão outros.