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Considerações sobre os Efeitos à Saúde Humana da Irradiação Emitida por Antenas de Estações Rádio-Base de Sistemas Celulares     (1)

Autores:  Maurício Henrique Costa Dias e Gláucio Lima Siqueira  (*)
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) – Centro de Estudos em Telecomunicações (CETUC) 

Resumo 

Este trabalho aborda a questão dos efeitos biológicos da irradiação de rádio-freqüência das antenas de estações rádio-base (ERB) de sistemas celulares. O assunto tem sido abordado de forma leviana por publicações não-especializadas de grande penetração na população em geral, levando a uma histeria que tem se refletido em ações na justiça contra as operadoras locais e na atuação recente de autoridades municipais que vêm sendo cobradas para legislar e fiscalizar as ERBs. Diante do quadro atual, e da experiência própria com medição de campo, nosso grupo de pesquisa resolveu apresentar uma visão crítica sobre o tema. Inicialmente, discutem-se os chamados efeitos térmicos, que são os mais conhecidos e estudados, e formam a base das atuais diretrizes internacionais que recomendam limiares máximos de exposição à irradiação na faixa de freqüência dos celulares. Tendo em vista estes limiares, o texto apresenta ainda uma avaliação teórica sobre os valores típicos de irradiação esperados, e estimativas baseadas em medições do próprio grupo e de outros pesquisadores. Um resumo atualizado sobre as recentes pesquisas que tentam associar a irradiação dos celulares ao câncer e a outros efeitos fisiológicos e comportamentais também é apresentado. Por fim, é feita uma breve análise sobre o comportamento da sociedade quanto à esta controversa questão.   

SUMÁRIO

I. Introdução

II. Efeitos Biológicos Conhecidos e Recomendações de Níveis de Segurança 

    II.1. Efeitos conhecidos da irradiação não-ionizante

    II.2. Recomendações de níveis de exposição seguros    

III. Densidade de Potência Próximo a uma ERB 

    III.1. Teórica 

    III.2. Medida

IV. Estudos Associando o Câncer à Irradiação de Microondas

   IV.1. Estudos epidemiológicos

   IV.2. Estudos com animais e células

V. Demais Efeitos em Estudo

   V.1. Efeitos fisiológicos e comportamentais

   V.2. Efeitos da modulação

VI. O Ponto de Vista da População e das Autoridades Locais

VII. Comentários Finais

Referências

 

I. Introdução  

          Quase 20 anos depois do início das operações dos primeiros sistemas analógicos no padrão AMPS em Chicago nos EUA, a tecnologia dos sistemas celulares se incorporou de modo definitivo ao dia-a-dia de milhões de pessoas no mundo inteiro. Não há dúvidas que o telefone celular pertence ao seleto rol das invenções que marcaram profundamente a evolução da humanidade no último século.

          A camada física do sistema celular é essencialmente uma ligação duplex via rádio, entre um usuário móvel que carrega um terminal portátil, e uma estação fixa – a estação rádio-base (ERB). Nos sistemas atuais e futuros, a comunicação se dá por modulação digital de uma portadora de microondas, seja na faixa de 800 – 900 MHz, seja na mais recente faixa de 1800 – 2000 MHz. Ou seja, a operação do sistema nesta camada implica na irradiação de ondas eletromagnéticas em alta freqüência.

          Em 1993, um cidadão estadunidense apareceu num programa de grande audiência na TV daquele país (“Larry King Live”, da CNN), alegando que o uso do telefone celular havia causado ou exacerbado o câncer que matara sua esposa [1]. David Reynard havia processado tanto a empresa que desenvolvera o aparelho, quanto a operadora local de telefonia da qual ele e sua família eram assinantes. Uma discussão frenética e controversa assolou a mídia local àquela ocasião, e no centro dos debates aparecia uma norma do IEEE (Institute of Electrical and Electronic Engineering), a C95.1-1991 [2], que estabelecia limiares de segurança quanto à exposição à irradiação não-ionizante, que inclui a de microondas. Tal norma estava inclusive para ser adotada pelo órgão regulador de telecomunicações norte-americano, a FCC (Federal Communications Comission) e representava o resultado de 8 anos de trabalho de 125 engenheiros, biofísicos e pesquisadores de câncer. Mais ainda, o COMAR (Committee on Man and Radiation) do IEEE havia recém emitido uma declaração afirmando que os celulares eram considerados seguros em uso normal.

          O processo judicial de Reynard foi cancelado por uma corte federal em 1995 por falta de evidência científica válida [3]. Processos semelhantes desde então não vêm obtendo sucesso nos EUA. Entretanto, a polêmica gerada pela questão revelou que as respostas existentes àquela época não eram inteiramente satisfatórias. Surgiu então uma nova onda de pesquisas explorando possíveis efeitos da irradiação dos celulares à saúde humana. Em particular, o efeito que vem dominado as discussões públicas tem sido o câncer, mas este não é o único efeito pesquisado. 

          A literatura gerada sobre os estudos dos efeitos biológicos da irradiação de microondas é da ordem de milhares de trabalhos, que vêm sendo feitos desde a Segunda Guerra Mundial [3]. A grande maioria não apresenta evidências convincentes sobre possíveis efeitos adversos. Algumas 

centenas de pesquisas, entretanto, apresentam resultados convergentes e reprodutíveis que dão margem a preocupações. Tais artigos formaram a base para o estabelecimento de normas ou diretrizes de segurança quanto à exposição à irradiação de ondas não-ionizantes, como a C95.1 já citada e outras muito semelhantes emitidas em outros países [4].

          Na verdade, mesmo os estudos que fundamentaram a elaboração das diretrizes de segurança existentes não podem ser considerados ainda como prova cabal de que os celulares sejam totalmente seguros. Poucos dos estudos que verificam se a exposição a RF é perigosa para o tecido animal envolveram trabalho padrão de toxicologia (o tipo que um laboratório químico ou farmacêutico precisaria realizar para obter aprovação regulamentar de um novo produto). Mais ainda, poucos destes estudos lidam especificamente com os tipos de modulação pulsada atualmente em uso, ou com condições de exposição típicas às produzidas por aparelhos celulares [3].

      O rol de pesquisas é controverso em diversos aspectos. Alguns efeitos verificados por pesquisas com animais ou com células isoladas por exemplo, não são ainda bem compreendidos quanto a reais implicações de dano à saúde. Vários destes efeitos são relatados mesmo quando em níveis estatisticamente baixos, e comumente não conseguem ser reproduzidos por outros pesquisadores. E alguns trabalhos reportam efeitos mesmo sob baixos níveis de exposição. É importante salientar que os comitês de elaboração das diretrizes de segurança tiveram acesso a tais pesquisas, mas via de regra têm concluído que elas não provêem base suficiente para algum tipo de recomendação [3].

          Uma das mais completas referências atuais sobre o assunto é o “International EMF Project”, um projeto de pesquisa estabelecido em 1996 pela World Health Organization (WHO – www.who.int/peh-emf/) para avaliar as evidências científicas existentes sobre possíveis efeitos de campos eletromagnéticos à saúde, incluindo os emitidos por celulares e suas ERB. Uma revisão crítica sobre a literatura existente associando possíveis efeitos biológicos à irradiação emitida especificamente por ERB de sistemas móveis é disponibilizada ao público, sendo atualizada periodicamente [5].

      Na contramão do comportamento usual dos comitês de especialistas, um grupo formado pelo governo britânico emitiu recentemente um relatório com a análise sobre os possíveis efeitos maléficos dos celulares, que incluía ainda recomendações de segurança ao público em geral. O grupo era liderado por Sir William Stewart, e o relatório ficou conhecido como “relatório Stewart” [6]. Como com os demais comitês, concluiu-se que o balanço de evidências não indica efeitos à saúde da população em geral, quando exposta a níveis abaixo dos limiares de segurança atuais. Entretanto, acrescentou-se não ser possível naquele momento afirmar que a exposição à irradiação de microondas seja totalmente livre de causar potenciais efeitos adversos à saúde. A bem da verdade, este último comentário caberia para qualquer tecnologia, mas foi utilizado como gancho para a abordagem adotada em suas recomendações, que incluem uma série de procedimentos cautelares. Em particular, a recomendação para se evitar a instalação de ERB próximo a escolas, e a que desencoraja as operadoras a promoverem o uso de celulares por crianças, ainda que bastante questionáveis [5], ganharam atenção especial da mídia local e internacional, com reflexos inclusive no Brasil.

          Apesar dos esforços da comunidade científica em esclarecer a população sem gerar temores infundados generalizados, observa-se que infelizmente esta última tendência é a que tem sobressaído aqui no Brasil. A mídia não especializada vem publicando matérias em volume cada vez maior, com foco distorcido sobre a realidade científica dos fatos, causando temor desnecessário à população. Em particular, a distorção mais clara que se constata é a associação das ERB, e não dos aparelhos, aos potenciais efeitos biológicos, quando o consenso na comunidade científica é que justamente a situação inversa corresponde ao problema pesquisado na maioria esmagadora dos casos [5]. Outro fator que tem agravado o frenesi sobre o assunto foi a divulgação maciça, na mídia não especializada, de um trabalho da Universidade Federal da Paraíba, inédito no país, avaliando alguns efeitos da irradiação de microondas em ratos de laboratório [7]. Embora claramente destacado pelos autores que os resultados são preliminares, carecendo ainda de confirmação por repetição e cuidadosa interpretação das estatísticas medidas, algumas reportagens não especializadas conferem ao trabalho um status de evidência definitiva da nocividade dos celulares aos leitores leigos [8]-[9].

          Tomando equivocadamente as ERB como “bode expiatório”, a população vem se mobilizando para se proteger de eventuais danos à saúde, de modo semelhante ao que já havia ocorrido em outras partes do mundo. Até mesmo uma associação, a ABRADECEL (associação brasileira de defesa dos moradores e usuários intranqüilos com equipamentos de telecomunicações celulares), foi criada para pressionar as autoridades a agirem preventivamente contra as operadoras [10]. O cenário regulamentar conflitante ajuda a aumentar o caos. Há interpretações da Constituição Federal que entendem como competência municipal legislar sobre níveis de proteção de irradiação, como ocorre em Campinas e Porto Alegre, por exemplo [4]. Entretanto, legislar sobre telecomunicações é privativo da União, cabendo à Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) esta tarefa. Embora a ANATEL tenha posto sua proposta de regulamento de exposição a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos na faixa de radiofreqüência (RF) [11] à consulta pública por duas ocasiões em 2001 (285 de 30/03/01e 296 de 8/05/2001), até a presente data o regulamento ainda não havia sido publicado. A base da proposta são as diretrizes de segurança da “International Commission on Non-Ionizing Radiation Protection” (ICNIRP) adotadas na Europa [12], e citadas pela própria ANATEL como a referência provisória adotada pela agência desde 1999.

      Diante do confuso cenário atual, começam a surgir diversas ações na Justiça contra as operadoras, com ganho de causa, ao contrário do que acontece em outros países. Recentemente, sob alegação do temor em relação à saúde, os moradores de um prédio no Rio de Janeiro conseguiram impedir na Justiça a instalação de uma antena no edifício vizinho [13]. O argumento usado foi um artigo do Decreto municipal 19.260, de 8 de dezembro de 2000 [14], que proíbe a instalação de antenas a menos de 30 metros de outra edificação de altura superior. É interessante salientar que a distância limite do referido artigo é um parâmetro urbanístico, sem qualquer referência a proteção de níveis de irradiação, que o próprio decreto (art 2o) destaca como algo a ser regulado pela ANATEL.

          O presente texto se propõe a apresentar uma revisão crítica atualizada sobre os efeitos biológicos da irradiação de microondas, com foco em particular no papel das ERB. Para isso, o trabalho foi organizado em mais cinco seções. A seção II 

aborda os efeitos conhecidos e as diretrizes que estabelecem níveis de exposição máximos de irradiação não-ionizante, que protegem essencialmente contra aqueles efeitos. A seção III apresenta uma análise teórica e relatos de medidas (próprias e de outros pesquisadores) dos níveis de densidade de potência esperados ao redor de ERBs. Em seguida, um resumo das pesquisas sobre os potenciais efeitos biológicos não totalmente conhecidos é apresentado, avaliando ainda a controvérsia envolvida em algumas pesquisas e na interpretação de seus resultados, começando com o câncer e suas variações na seção IV. Os demais efeitos em estudo são apresentados na seção V. Uma breve análise sobre o atual comportamento da sociedade quanto ao assunto em questão é tecida na seção VI. Por fim, a seção VII oferece algumas considerações finais.


(*) Os autores: 

Maurício Henrique Costa Dias (mhcdias@cetuc.puc-rio.br) nasceu em 25 de julho de 1970. Formou-se em Engenharia de Telecomunicações no Instituto Militar de Engenharia (IME) em dezembro de 1992. Obteve seu título de Mestre em Engenharia Elétrica, área de Eletromagnetismo Aplicado, subárea de Propagação, no mesmo Instituto em janeiro de 1998. Atualmente é capitão do Exército, e está em doutoramento, nas mesmas área e subárea do mestrado, no Centro de Estudos de Telecomunicações (CETUC) da PUC-Rio desde março de 2000. Seus interesses atuais incluem caracterização de canal de propagação, teoria geométrica da difração, estimação espectral e teoria de “wavelets”, entre outros tópicos das áreas de propagação e processamento digital de sinais. Em agosto de 2001, seu artigo “Ray-Tracing Analysis of 3.5 GHz Propagation at a Typical Urban Environment for FWA Systems” recebeu o “Amazon Microwave and Optoelectronics Prize” como melhor trabalho de um aluno de pós-graduação na Conferência Internacional de Microondas e Optoeletrônica (IMOC 2001) da SBMO/IEEE MTT-S, em Belém – PA.  

Gláucio Lima Siqueira (glaucio@cetuc.puc-rio.br), nasceu em Belo Horizonte, MG em 18 de agosto de 1952. Recebeu o grau de Engenheiro Eletrônico e de Telecomunicações com distinção pela PUC/Minas em 1977 e o grau de Licenciatura em Matemática pela UFMG em 1978. Recebeu o título de Mestre (M.Sc.) em Engenharia Elétrica pela UNICAMP em 1982 e o título de PhD. pela Universidade de Londres (University College London), Inglaterra, em 1989. Desde 1989 trabalha no Centro de Estudos em Telecomunicações (CETUC) da PUC/Rio onde exerce o cargo de Professor Associado. Já publicou vários artigos técnicos em revistas especializadas e em conferências nacionais e internacionais. Seus interesses incluem caracterização de canal rádio móvel (medidas e modelamento), propagação em meios aleatórios, atenuação por chuva em enlaces terrestres, sistemas de comunicação sem fio em geral dentre outros. Na PUC/Rio já recebeu várias distinções por suas atividades didáticas e de pesquisa tendo orientado várias teses de mestrado e doutorado. Tem, nos últimos 10 anos, participado de projetos de pesquisa patrocinados por empresas do ramo. É membro de IEEE desde 1989.  

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